CASA ÍTACA

Projeto: Filipe Pederneiras
Local: Belo Horizonte
Ano: 2021
A casa, inspirada na travessia que é metonímia das travessias – a Odisseia, de Homero –, foi concebida para ser simples, como toda ideia astuta, e hospitaleira, como convém aos sabedores de que, para ser bem recebido, é necessário bem receber. A própria Odisseia pode ser interpretada em torno desses dois eixos: astúcia e hospitalidade.
Odisseu, conhecido por Ulisses no mundo latino, é o mais astuto dos heróis pan-gregos. Superou a força semidivina do notável Aquiles, cujos esforços braçais não permitiram o que o intelecto de Odisseu conquistou: penetrar os muros intransponíveis de Tróia. Foi com a célebre artimanha do cavalo de madeira que Ulisses pôs fim aos 10 anos de guerra sanguinolenta entre gregos e troianos. Uma ideia simples, que alegoriza a superioridade de pensamento humano sobre a força bruta.
A Casa Ítaca busca a simplicidade arquitetônica. Como um pensamento astuto, é uma linha reta à procura da efetividade de proporcionar boa circulação e beleza estética não somente aos seus habitantes, mas a todos aqueles que a avistarem e, de algum modo, dela usufruírem. Sem invejar a corpulência musculosa da força bruta, minimiza suas proporções (188 m² de área construída) sobre o terreno (1.330m²), deixando à paisagem o protagonismo estético e empenhando-se em, antes de impactá-la, promovê-la, valorizá-la e harmonizar-se com ela.
A Hospitalidade é o valor que faz com que Odisseu consiga retornar para casa. Para os gregos, a “Xênia” (ksénia) é o conceito que mistura hóspede e anfitrião num só termo, pois só é civilizado aquele que bem recebe seus visitantes esperando, assim, ser bem recebido quando for visitar. Preocupar-se com o bem-estar do estrangeiro é preocupar-se com seu vizinho, com seu entorno, com seu concidadão. Esse é o caminho pelo qual a cidadania e a civilização vencem a barbárie.
Segundo Homero, durante a luta de Odisseu para voltar para casa, em Ítaca há aqueles que creem em sua morte e cortejam Penélope, sua esposa, obrigada pelo costume da Xênia a tratá-los como hóspedes. Por isso, enquanto seus pretendentes pedem vinho e promovem festividades, Penélope não pode mandá-los embora. Náufrago e inconsciente, Odisseu é bem recebido pelos generosos Feácios, que o despacham para a terra natal com uma boa embarcação repleta de presentes e tesouros. Assim os Feácios, bons de Xênia, ajudam o insigne vizinho a restaurar a ordem em sua terra natal. Verdadeiros amigos. Por isso, são imortalizados como exemplo de civilidade na obra de Homero.
A Casa Ítaca busca a ideia de hospitalidade, tão cara à coletividade mineira. Orientada para uma encantadora vista de Belo Horizonte, procura a permeabilidade visual que permita a qualquer transeunte usufruir da mesma vista que usufruirão seus habitantes. O projeto foi concebido para não impactar aqueles que admirarem Belo Horizonte desde a rua; e para embelezar discretamente a vista daqueles que observarem a rua desde a cidade.
Terreno e edificação
As condições bastante peculiares do terreno foram determinantes para definição do partido arquitetônico, tanto pelos seus aspectos físicos, quanto pela sua inserção no contexto urbano. Harmonizar paisagem e construção foi o principal objetivo da proposta.
Localizado na região leste de Belo Horizonte, sendo parte da ADE Serra do Curral, o lote possui uma ampla frente (35 m) que dá acesso a um acentuado declive – 37º (75,35%) na porção mais extrema –, coberto pela vegetação característica do cerrado mineiro. Abre-se também a uma privilegiada vista panorâmica da cidade, ponto de partida para o projeto de arquitetura, tanto sob a perspectiva dos habitantes da casa, quanto pela garantia de sua fruição aos passantes.
A residência se desenvolve em um único pavimento, implantado nas adjacências do afastamento frontal – buscando minimizar a distância do terreno, ocasionada pelo forte declive – e em cota altimétrica próxima à do ponto mais baixo do alinhamento – facilitando o acesso de pedestres/veículos e evitando exceder os limites de corte e aterro impostos pela legislação. A escolha do ponto de inserção da residência leva em conta, ainda, o desnível aproximado de 4,0 m entre os vértices da frente do lote, de maneira que, para quem a observa de fora, seu volume desaparece à medida em que se acompanha o greide da rua. A essa estratégia para garantir acesso à vista, alia-se ainda a opção de posicionar a garagem da casa, vazada em ambos os extremos, na porção em que a edificação e o espaço público se encontram em níveis de observação semelhantes, emoldurando a paisagem ao invés de barrá-la.
Parte da construção se apoia no terreno, enquanto o resto de sua extensão se sustenta por uma estrutura proposta como alternativa aos habituais “paliteiros”, que tanto poluem a paisagem urbana belorizontina. Os elementos da fundação, fechados com blocos de concreto e revestidos de pedras naturais, tocam o solo na forma de volume único, desaparecendo à medida que o terreno sobe. Desse maciço, brotam sete “tesouras” metálicas que, associadas a um engradamento de vigas, fazem a sustentação e dão um fechamento à laje de piso.
Elementos estruturais de madeira – aparentes na fachada principal – e de concreto – embutidos nas alvenarias – conformam o resto da estrutura, complementada pelo madeiramento do telhado de uma água que se estende sobre todo o volume da casa. Os generosos beirais ajudam a proteger a fachada de vidro dos ambientes de permanência prolongada, que se abrem para a deslumbrante vista orientada para o norte.
Programa
O programa de necessidades, desenvolvido em conjunto com o jovem casal a quem a habitação se destina, foi distribuído para priorizar o acesso dos espaços chave à paisagem.
Três quartos – sendo um deles uma suíte – e uma sala ampla integrada à cozinha se voltam ao interior lote, com vista para a cidade. Na parte externa, as áreas de lazer assumem papel de mirante. Ao fundo do projeto (frente do lote) foram locadas as instalações sanitárias, área de serviço, closet, rouparia e despensa.
A partir da entrada e da garagem, dois eixos de circulação foram propostos: mais próximo à rua, ao fundo da casa, o de circulação social e de serviço; à frente da fachada principal, voltado para a vista, o de circulação íntima.
O primeiro conecta o acesso diretamente à parte comunal da casa, composta pelo solário e área de lazer coberta, sendo que esta se comunica diretamente com a porção social interna (jantar / estar / cozinha), podendo se juntar a ela por meio da abertura de portas de vidro.
O segundo leva ao interior do ambiente que conjuga sala e cozinha, passando em frente aos quartos e permitindo acesso direto a eles. Funciona também como varanda aos locais de descanso, contribuindo ainda para um maior recuo das portas de vidro, protegendo-os do sol.
A todos os ambientes de permanência prolongada conferiu-se a possibilidade de abertura por meio de portas de correr, unindo interior e exterior e convidando à paisagem, permitindo que o vento penetre e circule livremente.
